É sempre um desafio refletir sobre a Mística e a Espiritualidade que impulsionaram a vida e a missão do Pe. José Maria Benito Serra que viveu no século XIX na Espanha na época pós revolução industrial com as mudanças inerentes a essa conjuntura sócio, política e econômica. Tenta-se fazer uma releitura dessa experiência de vida para o hoje da história da humanidade que é marcada por conflitos e efervescência de transformações significativas e rápidas nos sistemas políticos, econômicos e sociais. Estas transformações, assim como outros fatores, marcaram modos diferentes de vivenciar essa Mística e Espiritualidade.

Olhando para o Pe. Serra, que com seu olhar crítico e sensível à dor das pessoas, é conduzido ao encontro dos pobres que se encontravam em vulnerabilidade econômica, social, política, cultural e eclesial. Em sua época foram os povos aborígenes da Austrália onde foi missionário por doze anos; as crianças pobres das periferias da cidade de Madrid /Espanha; as crianças doentes do hospital São João de Deus e as mulheres pobres que imigravam para as grandes cidades, sobretudo, Madrid, entre 1860 e 1878 em busca de trabalho. Quando elas chegavam ali, caíam nas malhas da prostituição que era regrada por “Regulamentos que vulneravam gravemente os direitos humanos e a dignidade das prostitutas…”¹ e como consequência, herdavam a marginalização social e eclesial que traz atrelada a violência policial, entre outras. Este grupo de mulheres ficava marcado pelo estigma de pecadoras e transmissoras de doenças sexuais. Devido a esse regulamento eram obrigadas a fazer os controles sanitários e, quando necessária, a internação no hospital São João de Deus, cuja situação tornava-se ainda pior, pelas péssimas condições sanitárias, higiênicas e discriminadoras.
A Espiritualidade missionária e a ousadia profética do Pe. Serra fazia-se sinal do Reino de Jesus nas visitas frequentes a estes espaços de exclusão, onde ficava mais evidente e visível o preconceito existente nos imaginários sociais dessa época. Com a aproximação das mulheres e seu contexto, foi sentindo a dor do corpo alheio, suas emoções, suas histórias de muitas origens. Esse contato, segundo jeito de Jesus de Nazaré, não lhe permitiram a indiferença diante dos gritos vindos dos porões inumanos que transformaram os corpos das mulheres, em objetos de consumo, de prazer e de lucro.
Pe. Serra comovido com esta situação tanto humana, social, cultural e eclesial, se propõe a dar uma resposta quase imediata e faz ecoar uma expressão de Dom Pedro Casaldáliga “É a hora daquela urgência que não permite esperar”. Ele sentia a urgência de resgatar de alguma forma, a dignidade da pessoa criada à imagem e semelhança de Deus. Quer para elas justiça, modificar as histórias, apesar das muitas dificuldades. Indignado com esta situação, torna-se porta-voz desse grito em outras instancias da sociedade, juntamente com Antonia Maria de Oviedo. Assim no dia 1° de junho de 1864 abrem a primeira casa de acolhida para as Mulheres que desejavam outra alternativa de vida ao deixarem o Hospital São João de Deus.
É esta uma parte da história, um caminho de Mística e Espiritualidade que está se resignificando neste século XXI. E em 1 de junho deste 2014 celebram-se os 150 anos, da Missão específica da “Família Oblata que segue comprometida com as mulheres construindo juntas novos caminhos de esperança e libertação”.²
A indignação de Pe. Serra e Madre Antonia, continua clamando por visibilidade e compromissos concretos também hoje. O que até o momento era quase invisível aos olhos da sociedade e inclusive no âmbito eclesial, veio ganhá-las na Campanha da Fraternidade 2014 assumida pela Igreja Católica com o tema: “FRATERNIDADE E TRÁFICO HUMANO”, uma realidade tão complexa, já que ameaça, explora, mercantiliza, dilacera e subtrai inúmeras vidas de pessoas humanas. O texto base desta Campanha alerta a cristãos e cristãs a olhar para esta realidade “…Entre essas situações de vitimização podemos destacar as das mulheres exploradas para o mercado sexual: A mulher vítima de tráfico para o mercado sexual aproxima-se de uma conceituação abrangente que contempla todas as mulheres que se encontram inseridas nos processos migratórios, e sua situação de exploração e de violação de direitos enquadra-se em vasto conjunto de práticas decorrentes da feminização da pobreza. Nesta perspectiva, a vítima nomeada, tipificada e classificada, já não se reconhece no amplo contingentes de mulheres, sem rosto, sem voz, sem nome e sem território, que compõem as novas escravas; que, entretanto, deixavam de ser “brancas”, como no final do século XIX, e passa, apenas, a serem mulheres, como massa anônima, que o mercado reconstrói com novas roupagens de ilusão, de sedução, exotismo e novidade, tanto no campo da oferta, como da procura”.³

Foi essa Mística e Espiritualidade sempre atual, que inspirou e impulsionou a Profetizas e Profetas de ontem e de hoje, que gritaram e gritam a favor da Vida, que se alimentaram e se alimentam com as fontes da convivência com as pessoas menos favorecidas da sociedade, com a Palavra de Deus que possibilita o encontro pessoal e comunitário com Jesus Redentor, com a experiência amorosa de Jesus com o Deus da Vida e a manifestação histórica de sua missão expressa pelo profeta Isaias e pelo evangelista Lucas: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça da parte do Senhor” Depois fechou o livro, entregou ao ajudante e sentou-se. Os olhos de todos, na sinagoga estavam fixo nele. Então começou a dizer: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir.” 4
Trazer esta realidade e os seus desafios para a visibilidade tem tudo a ver com a Mística e Espiritualidade Oblata que nos convoca a uma ação transformadora para o hoje e no futuro imediato, com ousadia e profecia em ação. Eis também aqui a fonte e a herança da Mística e Espiritualidade da família das Oblatas do Santíssimo Redentor: “Ser Oblatas configura nosso modo de ser e estar no mundo. Esta identidade que abarca a totalidade de nossa vida, se constrói e se alimenta desde as origens em torno da missão, na experiência de Deus e na vida fraterna… Sentimo-nos em missão partilhada com leigas/os identificados(as), com a Espiritualidade Oblata ou de outras espiritualidades, com outras pessoas crentes ou não e com instituições eclesiais e sociais, para responder os apelos e desafios atuais que brotam da realidade das mulheres”.5

Ir. Ivoni Grando – OSR
[1] Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, “Beber na Própria Fonte”, p. 22, 2013.
[2] 150 anos compartindo vida, Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, 2014.
[3] Campanha da Fraternidade, CNBB – n.25, p. 21 e 22, 2014,
[4] Is. 61,1-2 e Lc 4,18-19
[5] Assembleia Geral, Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor,” Resignificar nossas vidas desde o Seguimento de Jesus Redentor, p. 8 e 9- 2013”