O evangelista Lucas elabora longamente a subida de Jesus, da Galileia a Jerusalém, para a Páscoa final (Lc 9,51-19,27). No percurso dessa “viagem”, Lucas insere diálogos e declarações de Jesus, muitas das quais se encontram também no Evangelho de Mateus, embora talvez em outro contexto. Trata-se de palavras de Jesus tomadas da “Quelle”, a coleção de ditos com que Mateus e Lucas enriqueceram, cada um a seu jeito, o primitivo Evangelho de Marcos. Com esses ditos, Lucas transforma o relato da viagem num ensinamento rico e, muitas vezes, radical. O de hoje, que se encontra também em Mt 10,34-36, é certamente radical. Lucas o insere logo depois de uma exortação à prontidão permanente em vista da volta do Senhor para pedir contas de nossa fidelidade e prática (Lc 10,35-48). Assim, essa perspectiva final marca as nossas opções do dia a dia. E essas opções podem opor-nos, na prática, às pessoas com as quais convivemos, nas nossas sinagogas ou igrejas e até nas nossas casas e famílias: “pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra” – como já dizia o profeta Miqueias (Mq 7,3). Aliás, o fato de Jesus citar um profeta acrescenta uma dimensão especial: o cumprimento das Escrituras. Aquilo de que falavam os profetas alcança sua plenitude agora.
A palavra de Jesus supõe que o tomem pelo Messias (em 9,18-20 Simão já havia declarado essa opinião). Mas não é um Messias como eles imaginam, alguém que produza pacificamente e quase que por milagre a paz. Que a “paz” fosse o grande presente do Messias era a expectativa corriqueira, e isso no sentido mais amplo que se possa imaginar, pois na língua de Jesus paz significa a plenitude, a satisfação de tudo o que o ser humano possa desejar honestamente diante de Deus. O problema é que a paz messiânica é fruto da justiça (Is 32,17), supõe o agir justo dos “filhos da paz”. E é isso, exatamente, que vai dividir as pessoas, de modo que o Messias, de fato, traz uma divisão. E o critério dessa divisão é Jesus mesmo. O que combina com seu caminho, com seu modo de agir, garante o beneplácito de Deus; o contrário, não. É bom lembrar o que já anunciou João Batista: o “mais forte” que viria depois dele batizaria com o Espírito Santo e com fogo (Lc 3,16). Pois bem, o fogo chegou (Lc 12,49).
Pe. Johan Konings, sj
Fonte: Revista Vida Pastoral