Jesus, o rosto misericordioso de Deus
O Evangelho de Lucas aprofunda, de maneira especial, o tema da misericórdia. É o caminho que proporciona a inclusão de todas as pessoas na proposta de amor e salvação revelada em Jesus. A casa de Simão, o fariseu, serve de cenário para a mensagem a ser assimilada e jamais esquecida pelas comunidades cristãs. O fariseu convida Jesus para comer com ele, em sua casa. Casa e comida são dois elementos que apontam para o projeto de “comunhão de mesa”. As comunidades primitivas reuniam-se nas casas para atualizar a memória de Jesus, a oração, a partilha da comida e a ceia.
Sentar-se à mesma mesa representava a determinação de relacionar-se na igualdade e na fraternidade, sem discriminação de raça, sexo ou classe social, expressando as mesmas convicções religiosas. Esse projeto, porém, não foi tão tranquilo. A dificuldade maior se deu na relação entre cristãos de origem judaica e cristãos gentios. Além disso, na época da redação do Evangelho de Lucas, percebe-se forte tendência de discriminar as mulheres, abafando o seu protagonismo na animação das comunidades cristãs.
O fato de Jesus aceitar o convite do fariseu demonstra que o mestre não faz acepção de pessoas. Sente-se livre em qualquer ambiente. É portador do amor de Deus que se estende a todos, sem discriminação. Na mesa há outros convivas. Entre eles dificilmente estariam também mulheres. Decerto seriam os amigos de Simão, pertencentes ao mesmo partido farisaico. Estariam, quem sabe, também os apóstolos?
A narrativa apresenta uma mulher que aparece de repente e se coloca aos pés de Jesus. Ela é da cidade, sem nome e conhecida como pecadora. Trouxe um frasco de perfume precioso e, entre lágrimas, unge os pés de Jesus, beija-os e enxuga-os com os cabelos. Os detalhes da ação da mulher revelam profundo sentimento de amor e gratidão. Simão, diante do que está vendo, não ousa criticar abertamente a atitude de Jesus, mas, em seu coração, põe em dúvida a sua qualidade de profeta, pois está acolhendo uma pecadora.
A parábola que Jesus conta tem por finalidade desmascarar a atitude de superioridade e arrogância da parte dos que se consideravam justos diante de Deus. Tem endereço certo. A concepção farisaica de justiça divina relacionava-se com o cumprimento das leis. O perdão dos pecados e a salvação estariam condicionados pela observância legalista. Essa segurança que o sistema religioso lhe dava impedia o fariseu de entender e acolher a gratuidade do perdão e da salvação. Somente quem deve
muito, isto é, quem tem consciência profunda de seus pecados conseguirá fazer a experiência do amor sem limites de Deus.
A mulher pecadora irrompe, sem pedir permissão, naquele ambiente fechado e excludente. Sua atitude faz abrir os olhos para enxergar a presença de Jesus, o Filho de Deus, que vem trazer o perdão e a paz sem atrelamento ao sistema legalista do Templo. Na pessoa e na proposta de Jesus, a mulher se sente contemplada. É acolhida como sua discípula; pode comungar da mesma mesa da Palavra e do Pão; pode fazer parte da mesma Igreja, o Corpo de Jesus.
Não é difícil perceber que a narrativa tem uma função de denúncia da exclusão de mulheres que, com muita probabilidade, está em processo na época da redação do Evangelho, pelo final do primeiro século. O texto exerce também a função de atualização da proposta de Jesus, que inclui no seu seguimento tanto os homens – os Doze – como as mulheres: Maria Madalena, Joana, Susana e várias outras. Diz delas o que não diz dos Doze: serviam a Jesus com seus bens (cf. 8,1-3).
Celso Loraschi
Fonte: Revista Vida Pastoral